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-Beldade

-Má distribuição

-Retirada

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-O mestre

-qualquer coisa


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sábado, agosto 15, 2015

Doppelgänger

-A primeira vez foi... há um mês. Na véspera do feriado... eu estava na cozinha. Pela janela eu vi... lá fora, diante do portão.
-Seu marido?
-Sim! Não... não era ele. Uma imagem... dele... alguém igual a ele.
-Não era o próprio Toni?
-Toni estava em casa, arrumando suas coisas.
-Seu marido estava com você? Dentro de casa?
-Sim.
-Tem certeza disso?
-Tenho! Primeiro eu vi um vulto... depois... ele chegou perto do portão e só ficou olhando para mim. Então eu percebi. Era Toni, era meu marido que estava ali!
-Mas ele não poderia estar...
-Não! Ele estava na sala, eu o ouvia mexendo nas caixas, assobiando...
-Deixe-me ver se entendi...
-Toni estava ali, dentro de casa, comigo. Mas também estava lá fora, no portão, olhando direto nos meus olhos... como se estivesse com raiva de mim.
-Com raiva?
-Sim! Depois parecia que tentava me dizer alguma coisa, mas eu não ouvia nada! Eu queria chamar Toni mas a voz não saía... era como um pesadelo... Então... desapareceu... Depois eu tentei falar com Toni sobre isso... mas não consegui... era como se algo me travasse a voz quando tentava mencionar o fato.
-Isso aconteceu outras vezes?
-Sim. Depois de alguns dias, no mercado. Foi... horrível, assustador. Ele gesticulava... os braços estendidos para a frente, as mãos levantadas como numa súplica... o rosto... uma tristeza enorme... ele chorava... eu comecei a chorar também...
-Tem certeza que não era o próprio Toni que estava ali?
-Não era ele! Eu telefonei para o escritório... ele atendeu. Eu saberia se fosse outra pessoa do outro lado da linha, não?
-Entendo.
-Depois disso, vem acontecendo com mais frequência. Na rua, em casa, no trabalho...
-Você sempre constata que Toni está em outro lugar?
-Sim. Ou ele está comigo, ou em algum lugar em que eu posso ver, ou...
-Darya...
-Sim?
-Eu estou... transtornado. Na verdade, estou mesmo arrepiado com seu relato.
-É muito grave, doutor?
-Ah... bem... não sei se grave é um termo adequado. Na verdade não sei o que dizer.
-Por que é que isto está acontecendo comigo?
-O fato de você estar tendo estas visões não tem nada de excepcional. O estresse ou o trauma explicariam isso, seria relativamente fácil de tratar.
-Então, o que o deixa tão transtornado?
-Darya... ver esse “duplo” do seu marido poderia ser consequência do trauma... não teria nada de espantoso...
-Que trauma?
-O que me deixa arrepiado é a outra parte do que você me contou.
-Que parte? E que trauma é esse?
-Darya... você diz que está convivendo normalmente com seu marido, certo?
-Sim. Toni e eu estamos muito bem, não temos nenhum problema...
-Então, Darya, é isso que me dá calafrios na alma. Darya... você não se lembra? Toni morreu em um acidente de carro, cerca de seis meses atrás!
-Não! Isso é...
-Darya, procure se lembrar! Eu cuidei do seu tratamento durante dois meses, até entender que você estava bem.
-Eu... me... lembro...
-...
-...
-Fique tranquila, Darya. Eu vou cuidar dos papéis para a sua internação.



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segunda-feira, março 24, 2008

Primeiro dia

O aparelho estava no chão, aos pedaços. Em volta, aquele bando de meninas, todas rindo e apontando para ela. Eram cinco ou seis, e quase todas tinham aquele olhar escarnecedor de quem não se importa com nada nem com ninguém.

Allanna chegou a agradecer o fato de ser surda, pois assim não podia ouvir as gargalhadas e piadinhas que, por um instante, a fizeram sentir como se estivesse no inferno.

Saiu correndo. Não se importou se a inspetora lhe daria uma advertência. Esqueceu-se do aparelho, dos livros, levou apenas o único caderno que tinha conseguido segurar enquanto elas a empurravam de uma para a outra.

Era uma sensação estranha, correr pelos corredores da escola, aquela escola antiga, cheia de estudantes, sem ouvir um único ruído. O vozerio das meninas ainda retinia em sua memória, mas no momento não havia nenhum som novo, que fosse captado pelos seus ouvidos e levado à sua percepção.

Percebeu uma entrada para o banheiro em uma parte da escola que ela ainda não conhecia, entrou correndo e olhou-se por alguns instantes no espelho, agarrando-se ao caderno. Percebeu que a mochila estava pendurada no ombro direito, com a alça esquerda solta, arrebentada quando aquela ruiva desdentada a puxou. Não tinha chorado ainda, mas, vendo-se sozinha, não se conteve. Encostou-se na parede, escorregou para um canto e foi se abaixando até ficar sentada no chão. Chorava como nunca tinha chorado antes.

Por um instante esqueceu-se dos ensinamentos dos pais. Teve raiva. Raiva daquele bando de meninas, provavelmente todas drogadas, que se aproveitavam de serem maiores que ela. Teve raiva dos donos da escola, que permitiam que aquele tipo de coisa acontecesse. Teve raiva até de seus pais, que a tinham colocado ali. E teve raiva de si mesma, por não ter reagido quando pôde, pois sabia que, se quisesse, poderia quebrar os braços de cada uma delas.

"Você poder fazer o mal não significa que você precise fazê-lo, filha. A não ser que seja para salvar a sua vida, não se justifica usar suas habilidades para ferir uma pessoa."

Por que ela tinha obedecido o ensinamento do pai? Deveria ter passado por cima, tido coragem de quebrar a cara de todas elas, assim elas aprenderiam...

Conteve as idéias, conteve a raiva. Sabia que o pai estava certo, concordava com ele. Ela mesma não quis reagir, não adiantava colocar a culpa em quem estava ausente. Mas, da próxima...

Sentiu uma presença. Percebeu uma sombra se mexendo e olhou. Uma colega sua estava entrando, segurando alguns livros no braço direito e mais alguma coisa na mão esquerda, que acenava. Pôde então ler seus lábios.

-Oi, você tá legal?

Hesitou um pouco, mas acabou respondendo:

-Aham.

A colega continuou:

-Elas não te machucaram?

A palavra "elas" deixou claro que esta que se aproximava não era uma das trogloditas. Parecia bem simpática.

-Não. Só estragaram o meu aparelho...

-Esse aqui?

-É. Por que você trouxe?

-Achei que talvez você poderia consertar...

-Não tem conserto, tá arruinado. Lixo.

-Ah, que pena... o que você vai fazer agora?

Hesitou novamente. Não queria dar detalhes de sua vida a uma estranha. Mas por algum motivo acabou respondendo:

-Tenho outros. Não é a primeira vez que eu perco um aparelho.

-Ah, que bom. Mas você vai ter que ir pra casa buscar? Ou alguém pode trazer? Eu posso...

-Não precisa. Eu leio lábios. E nem quero mais ouvir a voz daquelas harpias.

-Daquelas o quê?

-Harpias... tipo bruxas...

-Meu, por isso que elas te bateram... ouvindo você falar desse jeito até eu tenho vontade de te bater...

Assustou-se um pouco, mas percebeu que a colega estava rindo. Reconheceu que ela não estava falando sério. A estranha não esperou reação:

-Olha, elas são umas idiotas. Retardadas. Quando não estão com a cabeça cheia de heroína, estão chapadas. Quando não é nem uma nem outra, aí é Britney Spears ou coisa pior... Cara, elas são muito inúteis. Mas, não se preocupe. São tão retardadas e tão inúteis que não chegam a ser perigosas. Além disso, estão pegando no teu pé porque você é novata. Daqui alguns dias você deixa de ser novidade... aí elas nem vão mais lembrar de você. É tanta droga na cabeça que a memória não é o forte delas...

Allanna tinha se esquecido do choro. Da raiva. Ficou olhando para a colega, lendo suas palavras. Chegou a imaginar que a estava ouvindo. Sorriu levemente.

A outra continuou, então:

-Bom, o seu nome eu sei. Todo mundo sabe quem é Allanna Lavoie Svante. Eu... meu nome é Tamayre... você consegue entender?

Não tinhe entendido. Tentou acompanhar:

-Ta... merr...

-Não... Ta...

-Ta...

-... may...

-...mi...

-Não, nao; é o som de 'ai'... igual Einstein... aaaa-iiii....

-Ah... may!

-Isso! Ta-may-re... rrrrrre -- abriu bem os lábios para que a outra visse a língua vibrando.

Allanna enfim sorriu. Sorriu de verdade.

-Tamayre... é isso?

-Exato! É, parece que você não precisa mais disso de verdade...

Jogou os restos do aparelho na lixeira.

-Não, não preciso.

-Por que os teus pais te colocaram aqui? Quero dizer, eles são ricos, poderiam colocar você em qualquer escola do mundo, por mais cara que fosse... Bom, desculpa, acho que não é da minha conta.

Allanna agora já sentia poder considerar a outra como uma amiga.

-Tudo bem... é que eu não quero ficar longe deles. E eles vão ficar trabalhando aqui, por uns tempos...

-Entendi. Olha, é melhor a gente sair daqui, já tocaram o sino do final do intervalo... Você vai querer ir pra aula ou prefere ir pra casa?

-Não, eu vou pra aula sim.

-Má idéia... agora vamos ter aula de Latim. Meu, não entendo pra que isso... Não tem nenhum motivo pra gente ter que aprender uma língua morta...

-Bom, na verdade o Latim não é língua morta... muita gente ainda usa...

-Ah, fala sério...

-É sim... tem até banda de rock que escreve músicas em Latim...

-Você tá doida... Eu é que não...

Foi interrompida pelo ruído da porta do banheiro batendo contra a parede.

-Senhoritas! Posso saber o que estão fazendo aqui? O intervalo já acabou há alguns minutos. Se estiverem fumando ou tomando qualquer coisa não permitida, saibam que não terei piedade...

Aproximou-se e viu Allanna sentada no canto, com Tamayre abaixada ao lado dela. Viu que Allanna tinha estado chorando.

-Ah, mas o que houve aqui?

Tamayre pegou os restos do aparelho de dentro do cesto de lixo:

-Senhora Baumsteig... foi a turma da heroína... bateram nela... e ainda detonaram o aparelho dela. Ela é surda, e não ouve nada sem o...

-Sim, sim, senhorita Caldwell. Sei tudo sobre a senhorita Svante.

Certificou-se de que Allanna olhava para ela e perguntou:

-Você está bem, senhorita? Está ferida?

-Não, não me machucaram. Só estragaram minhas coisas.

-Então, não há nenhum motivo para não ir para a aula imediatamente, há?

-Não, senhora...

Tamayre interrompeu:

-Senhora, ela não pode ouvir...

Ao que a inspetora respondeu, virando o rosto propositalmente para que Allanna a pudesse ver apenas de lado:

-Senhorita Caldwell, eu sei muito bem que a senhorita Lavoie Svante é bem conhecida por sua extraordinária habilidade em leitura labial. Não é mesmo, senhorita?

Allanna respondeu prontamente:

-Sim, senhora.

-Então, como eu disse, não há nenhum motivo para que a senhorita perca um minuto a mais de aula. E o mesmo vale para você, senhorita Caldwell.

Tamayre falou baixinho:

-É melhor a gente ir... geralmente ela dá uma advertência sem pensar... se ela tá deixando a gente ir sem advertência... é melhor aproveitar.

Allanna levantou-se, deu um passo e estacou. A inspetora lançou-lhe um olhar de indagação, apertou os olhos e disse:

-Algum problema, senhorita Svante?

A voz de Allanna soava calma e firme:

-Senhora, com todo o respeito, por acaso estou recebendo tratamento especial?

A velha disse admirada, arregalando agora os olhos:

-O quê? Tratamento especial?

-Sim, senhora. Pelo que sei, a senhora não tolera desvios da norma. Pelo que sei a senhora nos daria uma advertência sem nem mesmo permitir que nos explicássemos. Por que eu estou recebendo permissão para voltar à sala sem uma advertência?

A velha ficou vermelha. Se não fosse de boa índole, teria explodido. No entanto, disse calmamente:

-Senhorita... se estou deixando você e a sua amiga irem sem uma advertência... é porque eu também não gosto nem um pouco daquelas criaturas que nós somos obrigadas a aturar aqui... em segundo lugar, porque hoje é o seu primeiro dia aqui. E em terceiro lugar porque as senhoritas não estavam fazendo nada errado. Além disso, como a senhorita pode me acusar de favorecê-la, se eu a estou mandando voltar para a aula mesmo sem o seu aparelho de surdez? Ora, se a senhorita prefere uma advertência, eu posso providenciar. O que vai ser?

Allanna deixou ver todo o embaraço em que se encontrava. Olhando para baixo, disse:

-Vamos para a aula, senhora. Muito obrigada.

Tamayre concordou com um ligeiro movimento da cabeça.

Ao saírem, a velha disse, num tom simultaneamente tão firme e amigável que deixou Tamayre impressionada:

-Senhoritas, por favor, tentem não se meter em encrenca. Aquelas criaturas não valem nada, não vale a pena se meter com elas. Vocês são duas jóias que temos aqui, e não quero que nada lhes aconteça.

Tamayre respondeu:

-Obrigado, senhora Baumsteig. Não vamos esquecer.

Allanna percebeu que as outras duas tinham dito alguma coisa, mas não perguntou nada. Estava feliz. Não estava mais sozinha. Afinal, o dia não tinha sido tão terrível assim.


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quinta-feira, dezembro 06, 2007

Beldade

"Contaram-me essa história quando eu era garoto, bem menino, e ia com meu pai pelas cidadezinhas do interior vendendo os doces que a minha mãe fazia em casa... e, já naquela época, diziam que a história era antiga - uns diziam até que era dos tempos do rei...

...

Enfim, a coisa foi assim: numa dessas cidadezinhas - não importa o nome, são todas iguais - havia um coronel, um fazendeiro poderoso, que tinha apenas um filho. Não que isso lhe importasse muito, pois o filho, rebelde, abandonou a riqueza da família para seguir carreira militar, passando a ser, por isso, rejeitado e difamado pelo pai. Ainda assim, o velho não chegou a deserdá-lo. Fazia, porém, questão de demonstrar que o filho era, para ele, motivo de grande desgosto.

Saíra o filho de casa aos dezessete anos e, desde então, apenas duas vezes estivera de volta, uma aos vinte e outra aos vinte e dois anos, por ocasião do falecimento de parentes mais ou menos próximos. Da terceira vez, tinha o moço já alcançado os bons vinte e nove anos, e um alto posto militar - nessa parte as versões se desencontram, pela falta de familiaridade do povo da região com as denominações de postos militares, indo de tenente a general ou, ainda, almirante. Para simplificar as coisas, digamos que ele fosse general, pois era já suficientemente senhor de si para vir visitar o pai sem precisar se apoiar em nenhuma desculpa.

Chegou a cavalo, sozinho, carregando pouca bagagem. Parou na venda da praça, tomou uma bebida - uma suposta testemunha ocular afirma ter sido conhaque. Pagou, voltou ao cavalo e dirigiu-se à fazenda do pai. Bem recebido, obviamente, ele não foi, mas ficou lá hospedado.

Vinha sempre à cidade para ter com quem conversar. Ficava na venda, contando histórias e bebendo, bebendo e contando histórias, elogiando o governo, elogiando o exército. As moças interessavam-se, talvez a maioria por pura curiosidade - um general na venda da praça não era coisa que se visse todos os dias, pelo menos até então-, mas ele não parecia se interessar por nenhuma, demonstrando, nesse aspecto, um ar de superioridade que contrastava fortemente com o caráter de humildade e simpatia demonstrado em todos os outros aspectos.

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Uma tarde, após ter discutido com o pai a respeito de suas decisões na vida, voltou à venda. Desta vez, porém, não conversou com ninguém: apenas bebeu. Quando já começava a escurecer, chamou-lhe a atenção uma moça, que passava pelo meio da praça, carregando sobre a cabeça alguma coisa volumosa amarrada em um lençol.

Após ficar olhando por alguns instantes a beleza da moça - embora não conseguisse ver seu rosto, o corpo era bem formado, os cabelos eram longos, negros e brilhantes e as roupas eram brancas como se tivessem acabado de ser lavadas - , perguntou ao dono da venda quem era ela. A resposta foi seca:

-Rapaz, nem queira saber, que com essa aí ninguém mexe.

Como o militar insistisse, ele explicou:

-Moça estranha, família esquisita. Ninguém sabe quem são, nem de onde vieram, nem o que fazem. Só se sabe que ela passa todos os dias pelo meio da cidade, pela praça, exatamente a essa mesma hora, sempre carregando aquele lençol carregado de sabe Deus o quê. Todos os que já mexeram com ela acabaram endoidecendo, e logo morreram ou foram embora da cidade sem dizer nada, para nunca mais voltar. Se você tiver juízo, filho, deixa ela pra lá.

E todos os que foram interrogados depois lhe disseram o mesmo tipo de coisa: a família dela morava em um local afastado da povoação, perto da mata, e ela ia todos os dias, de manhã bem cedo, à mata que ficava do outro lado da cidadezinha, e voltava à tarde, quase quando já era noite. Ninguém sabia exatamente aonde ela ia, nem o que fazia lá o dia todo, nem o que trazia quando voltava a casa. Ninguém nunca vira o seu rosto ou o de qualquer pessoa da sua família. Perto do lugar onde moravam reinava um silêncio absoluto, e todos diziam sentir calafrios ao se aproximarem de lá.

Obviamente ele não acreditou em nada disso. Mas, com uma cidade toda aconselhando-o a não se aproximar, achou melhor aceitar o conselho, e assim passaram-se algumas semanas.

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Logo, porém, a coisa foi ficando pior: não conseguia dormir, pensando na moça. Levantava-se bem cedo e ficava no meio da praça, para vê-la passar. Voltava à noite, para vê-la passar de volta. Depois de alguns dias, passou a segui-la durante alguns minutos. Depois de mais alguns dias, tentou segui-la até seu destino, mas cansou-se antes que a moça esboçasse uma parada. No dia seguinte, tentou ir a cavalo, mas este parecia incomodar-se com a moça e quase chegou a derrubá-lo, até que desistiu.

Até então havia tentado apenas segui-la. Como ficava cada vez mais angustiado, tentou, então, falar com ela. Em vão: ela não respondia, parecia andar mais rápido e sempre virava o rosto, de modo que ele tivera apenas um rápido vislumbre: um rosto alvo, mais branco ainda que seu colo e seus braços, nariz pequeno, boca pequena. E os cabelos, negros, longos e cintilantes, soltos, impedindo-o de vê-la como gostaria.

Mais alguns dias, mais angústia tomava conta do rapaz. Nem uma palavra, nem um olhar, ela o ignorava completamente. E todos o aconselhavam a fazer o que se sentia cada vez menos propenso a fazer: desistir dela.

Veio, então, o próximo passo: tentou barrar a passagem da moça. Todos ficaram olhando, espantados, o que iria acontecer. A moça limitou-se a ficar parada, olhando para baixo, até que ele baixou a guarda, ela aproveitou uma brecha e seguiu seu caminho.

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Já havia muito que não dormia mais, exceto um ou outro cochilo quando o corpo não agüentava mais o cansaço. Parou também de comer. Andava de um lado a outro, ficando às vezes alguns dias sem aparecer. O pai, a princípio, maltratou-o, dizendo que era um imbecil por ficar assim por uma moça. Depois, começou a sofrer também, vendo o filho naquele estado. Pensou até em ir pessoalmente falar com o pai da moça, mas o medo, que as histórias haviam inculcado nele, falou mais alto, e ele logo abandonou a idéia.

Um dia chegou à venda, à tarde, e pediu bebida. Não falava nada, e ninguém tentava falar com ele. Até que o dono da venda perguntou como estava indo, ao que ele respondeu:

-Mal. Não sei... mais... o que fazer... Por que ela está agindo assim? Por que não me diz um não, pelo menos? Qualquer coisa...

Como os conselhos já haviam acabado, o velho ficou quieto por alguns momentos. Depois, disse:

-Filho, o melhor que você pode fazer é esquecer essa moça... quanto mais pensar nela, pior fica a tua situação... essa moça deve ser algum tipo de bruxa ou assombração ou coisa assim... coisa boa é que não é.

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Depois de alguns minutos, acabou respondendo:

-Eu sei... o que tenho que fazer... os pais... ela quer que eu fale com os pais dela... é absurdo pensar que uma moça como ela daria atenção a um estranho...

E o velho:

-Rapaz, me escuta... não faça isso...

-O que, então? O que mais poderia ser? Vou falar com ela e dizer que, se é isso o que ela quer que eu faça, então assim vai ser...

Levantou-se e saiu. O dono da venda balançou a cabeça...

-Pobre rapaz!

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Era já a hora em que a moça passava pela praça, voltando a casa. O militar ficou a cavalo, esperando-a passar. Depois de alguns minutos, pôs-se a segui-la.

Como havia uma boa distância entre ele e a moça, o cavalo não protestou durante o caminho. Meia hora depois, percebeu que reinava à volta um silêncio absoluto: nenhum pássaro, nenhum ruído de vento, nenhum canto de inseto, nenhum réptil rastejando no chão... apenas as batidas dos cascos do cavalo e o próprio coração batendo.

Percebeu, ao longe, uma casa, que intuiu fosse a da família da estranha moça. Adiantou-se, então até ela. Aparentemente ela se assustou com sua súbita chegada. Como ele ficou parado com o cavalo à frente dela, ela novamente estacou e ficou olhando para baixo. Mais uma vez ele tentou conversar com ela:

-Ei, moça... como vai? Tudo bem, eu sei que você não quer falar comigo. Entendo que você não vai ficar conversando por aí com estranhos.

Nenhuma resposta. Apenas um leve movimento dos cabelos, talvez causados pela respiração, visto que não havia vento. O cavalo já estava quase incontrolável.

-Então, eu vou até a sua casa. Sim, vou falar com os seus pais, pra você ver que não tenho más intenções... Eu só quero conehecer você, sua família... não sou desses que ficam por aí se aproveitando das moças pra depois cair fora, sou de boa família, quero alguém pra casar, sabe... tudo o que eu quero é ter uma chance... se você realmente não quiser nada comigo, eu vou embora, deixo vocês em paz...

Nada ainda.

-...mas, você não pode me rejeitar assim sem motivo... vou agora até a sua casa, tenho certeza de que os seus pais vão me tratar melhor que você...

Então, aconteceu. Primeiramente ele achou que fosse só impressão sua. Mas imediatamente percebeu que era verdade: ela estava levantando a cabeça. Logo, viu-se olhando para o rosto dela, um rosto pálido, sem expressão; a boca, uma linha quase reta e apenas perceptível; o pequeno nariz reto e quase sem traços. Os olhos... completamente negros.

...

Como ele costumasse ficar alguns dias sem aparecer, passaram-se três dias até que o dono da venda finalmente convencesse o delegado a empreender uma busca. O pai do militar recusava-se a procurá-lo: remoendo-se em seu arrependimento, tinha medo de saber que alguma coisa tivesse acontecido a seu filho.

Ainda por indicação do dono da venda, os homens convocados pelo delegado começaram as buscas no caminho que ia da praça central até a propriedade da família da moça misteriosa. A cerca de duzentos metros da casa, encontraram. Em um espaço equivalente ao de uma casa pequena, cerca de uns dez metros de diâmetro, estavam espalhados vários ossos, que o delegado, filho de fazendeiro, logo identificou como ossos de cavalo. Pareciam ter sido raspados, como para se retirar a carne.

Além dos ossos, uma fivela de cinto, e algumas insígnias muito semelhantes às que o militar insistia em levar no peito, mesmo quando não vestia o uniforme. Um dente de ouro, como o que o rapaz tinha junto ao canino superior esquerdo, estava mais adiante. E o silêncio, como se nunca no mundo tivesse havido algum ruído...

Sentindo calafrios, o delegado ordenou a retirada. Nunca mais se ouviu falar do rapaz."

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quarta-feira, novembro 22, 2006

Má distribuição

A cidade de São Paulo é realmente um lugar incrível. Talvez não seja um bom lugar para morar, devido a todos os seus problemas. Uma visitação, porém, dependendo do lugar, nos deixa com vontade de ficar por lá...

Dias atrás fui até lá com um pessoal da faculdade, visitar alguns museus. Primeiramente uma visita à FAAP, onde havia uma exposição de esculturas e outras obras referentes aos deuses gregos. Até mesmo um singelo e impressionante elmo de guerra coríntio, feito em bronze, estava em exposição. A segunda parte da visita incluía uma passagem pelo Museu da Língua Portuguesa e à Pinacoteca do Estado. Tudo correu perfeitamente, é até difícil acreditar. Absolutamente nada de errado.

Porém, o ponto mais marcante da viagem não estava no programa. Nem é peça de museu.

Trata-se de uma figura extremamente marcante. Considerado por alguns um deus, por outros um mestre do lado negro, por outros ainda um simples papo-furado... "I sense something. A presence I've not felt since...", como diria Sith Lord Darth Vader...

Sim, eu senti uma presença. Durante a primeira visita. Uma freqüência peculiar, perturbadora, característica... e não estava errado: minutos depois de sentir essa presença, o encontro: lá estava ele, os mesmos traços, a mesma roupa, o mesmo olhar penetrante, o mesmo sorriso irônico. O engraçado é que só então me dei conta do significado daquela sensação: um reencontro com o passado. Passado que teve seus pontos positivos, mas também seus pontos negativos. E essa "presença" fez parte de vários deles. Tanto positivos, quanto negativos.

Cenário: padaria Barcelona, próxima à FAAP de São Paulo. Não havia tempo para procurar um local à nossa altura, portanto fomos, três amigas e eu, comer alguma coisa ali mesmo. Três reais um cappuccino, dois e cinqüenta um pãozinho de queijo, um e cinqüenta um (ou melhor, metade de um) café expresso. E por aí vai. Quando menos se espera, surge: em seu elemento, ao contrário de nós, sente-se inteiramente à vontade. Vem se aproximando, aparentemente não notou nossa presença. Cara de espanto: "Vocês! O que estão fazendo aqui, em São Paulo? Não me diga que agora estão morando aqui?". Não; só de passagem, visitando a exposição. "E fulano, como vai? E sicrano, ainda fazendo o de sempre? Mas, que coincidência! Encontrar vocês bem aqui, em São Paulo, essa cidade tão grande!"

O tempo urgia. A arrogância (ou seria só inocência, a inocência de quem não sabe o efeito que sua atitude causa sobre outras pessoas pelo simples fato de que nunca esteve no lugar delas?) somava harmônicos àquela vibração destoante. Terminado o lanche, vamos embora.

À fila do caixa, juntam-se duas moças: "Essas são minhas alunas, aqui na FAAP. Dou aula de cinema pra elas." Não eram as filhas do Silvio Santos, como ele dizia, mas, pela aparência e conversa, podiam muito bem ser suas colegas. O sorriso irônico torna-se uma careta de escárnio. "Esses aí foram meus alunos, na época em que eu dei aula em SJRP. Agora encontro eles aqui, na Barcelona, a melhor padaria do Brasil! Pra vocês verem como é má a distribuição de renda nesse país!"

Entreolhamo-nos, minha amiga e eu. Telepaticamente decidimos: sem comentários.

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domingo, novembro 12, 2006

Retirada

-Vamos?

-Espera... deixa eu ver o que tá acontecendo.

-Não, não dá tempo. Vou pegar o carro.

Enquanto minha irmã à casa da nossa outra irmã pegar o carro, fico tentando entender o que está acontecendo.

O céu está estranho, chuvoso, mas está tudo tranqüilo. Exceto essa sensação de "pressa" que toma conta de todos.

-Vai, filho, pega tuas coisas... a gente tem que sair logo. Os homens já vieram avisar várias vezes.

-Avisar o quê?

-Que tem que sair... que a gente tem que sair daqui.

-Mas, por quê?

-Tem que sair... avisaram que, se não, a gente vai preso. Os vizinhos já foram embora, tá tudo sem ninguém aí, as casas...

-Mas foram pra onde?

-Pra outro lugar, uns foram pra casa de parente, outros pra outra cidade.

-Mas que porcaria tá acontecendo aqui?

-Não sei... traz o teu pai, já deixei ele pronto. Vou pegar umas roupas.

Não faz sentido. Subo ao teto para tentar ver alguma coisa. A única coisa que vejo é o helicóptero da polícia, ao longe.

-Filho, desce daí... Eles vão te ver!

Com o brio de um inocente fico bem ali, no ponto mais alto, em posição de quem espera alguma explicação. Quem está no helicóptero aparentemente me vê, e ele começa a vir em minha direção.

-Desce daí! Cadê a tua irmã?

-Foi buscar o carro. Acho que eles me viram! Estão vindo pra cá!

-Ai meu Deus!

-Calma, não tem perigo.

-Eles já falaram pra gente sair daqui... eu disse que ia esperar você chegar... Desce daí! Vamos embora!

Algo que eu nunca imaginara antes: o helicóptero da polícia militar, pairando bem ali, sobre o meu quintal. Vira-se de lado para mim e um policial com megafone ordena que a casa seja evacuada imediatamente, que aquela é a única casa na região em que ainda tem gente. Nem ouve as minhas perguntas. Em sua humildade militar, limita-se a cumprir sua obrigação. O helicóptero se vira, e vai em direção ao centro da cidade.

-Tá vendo, filho, vamos embora logo!

Aida meio surdo por causa do barulho do aparelho, desço e vou dar uma olhada na casa. Tudo abandonado. Em meu quarto, recolho alguns livros e CDs de estimação, coloco na caixa que aparentemente continha coisas a serem levadas na "fuga".
Uma olhada no quintal. Lembranças. Muitas. Mas só isso... nada material que não possa ser deixado para trás.

Meu pai espera, perguntando:

-A tua irmã já chegou?

Respondo que ela está vindo, enquanto empurro a cadeira de rodas em direção ao portão da frente. O ruído de rotores volta a crescer, mas, desta vez, não é apenas um helicóptero, são vários. Passam em rasante pelo teto das casas, dando a impressão de que vão se enroscar nos fios da rede elétrica.

Algumas pessoas estão na rua, também em fuga. Minha mãe conversa com um senhor de uns setenta anos, que parece saber o que está acontecendo:

-Eles vão bombardear tudo mesmo?

-É, parece que vão, sim.

-Será que não tinha outro jeito?

-Parece que não... a coisa estava se espalhando muito rápido.

Antes que eu possa perguntar alguma coisa, minha irmã chega com o carro. Agindo pelo instinto, levo meu pai até à porta, ajudo-o a entrar, dobro e guardo a cadeira. Apressado, tiro minha mãe da conversa, sem nem pensar mais em perguntar seja lá o que for:

-Vamos, a gente tem que ir logo. Antes que seja tarde.

posted by panglossa at 12.11.06 0 comments

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sábado, novembro 11, 2006

Onicofagia

("Psicografado" durante uma aula de Sintaxe...)


Dentre as várias artes às quais se dedicam os seres humanos podemos citar a delicada arte da onicofagia. Essa arte, que consiste em um trabalho fino e delicado nas camadas de queratina das unhas, próprias ou alheias, ocupa, assim como a música, a pintura, a escultura e outras, uma posição de destaque na civilização tanto ocidental quanto oriental. Não se pode precisar a data da sua origem, porém é certo que é uma prática extremamente antiga, uma vez que, desde os primeiros registros de que se tem notícia, ela já se apresenta plenamente desenvolvida, praticamente em sua forma atual e já com as mesmas regras e os mesmos preceitos que são seguidos até hoje.


Alguns autores a consideram uma variação ou subcategoria da escultura, uma vez que consiste em se dar forma à matéria-prima encontrada na natureza. Entretanto, essa visão não é amplamente aceita, uma vez que o trabalho nas unhas é de natureza completamente diferente do que se realiza na escultura em geral: matéria-prima, instrumentos, técnica, tudo é diferente, além de haver muito menos liberdade para o artista, devido às restrições físicas dos próprios elementos envolvidos.


Outro argumento que vai contra esse ponto de vista é o fato de que a cor também tem seu lugar na maioria das obras, mesmo que de maneira limitada: vai-se, somente, desde o branco ou arroseado bem claro até o vermelho vivo, nos casos de maior expressividade.


Tal limitação, que afeta não só a cor mas também todo o trabalho referente à forma, deve-se à principal regra dessa arte: podem-se usar, apenas, elementos "naturais", ou seja, apenas as unhas (de verdade, em hipótese alguma postiças), os dentes, os lábios, a língua, as gengivas. Para a coloração, serve, além é claro da própria queratina das unhas, o sangue, usado em maior ou menor quantidade dependendo da coloração que se deseja atingir.


Um ponto importante dessa regra é que ela não especifica que os elementos utilizados devam se restringir aos do próprio artista; podem-se usar elementos alheios, o que nos leva às modalidades coletivas da onicofagia. Com relação a essa modalidade, há que se notar que, apesar da antigüidade dessa arte, ela é realizada quase que exclusivamente em sua modalidade individual. A onicofagia em dupla ou em grupo está ainda em seus primórdios, sendo de criação muito recente e, em geral, vista com pouca simpatia pelos artistas mais tradicionalistas. Considerada por alguns como vanguarda, por outros como não-convencional (e incluída na categoria das variantes "espúrias", juntamente com as modalidades que usam elementos artificiais como lâminas e tintas), por outros como anti-higiênica e até mesmo como indecente ou imoral, a principal crítica que a onicofagia em grupo recebe é a de que não permite a concentração, a dedicação e o controle que se podem atingir na modalidade individual.


Esta, aliás, é realizada espontaneamente, de forma não-planejada, em períodos de grande inspiração e elevação espiritual. Chega a ser, muitas vezes, perigoso interromper um artista quando ele ou ela se encontra em meio ao processo altamente introspectivo de criação. Muitos artistas, principalmente os mais renomados, chegam quase a um estado de transe quando estão trabalhando, tornando-se ríspidos ou ainda agressivos se interrompidos. Os mais elevados, porém, simplesmente ignoram qualquer perturbação quando estão criando, mantendo-se inteiramente concentrados e não dando qualquer resposta a estímulos exteriores.


Outra concepção errônea e muito comum com relação à arte onicofágica é a de que ela se limita aos membros superiores, ou seja, de que só pode ser realizada nas unhas das mãos. Ora, nenhuma regra proíbe sua realização nas unhas dos pés. O que acontece é que isso exige uma dedicação especial do artista, no sentido de trabalhar a maleabilidade corporal de forma a poder alcançar satisfatoriamente, com os dentes, as unhas dos pés. Essa prática, porém, torna-se cada vez mais popular à medida em que se difunde a onicofagia grupal, que elimina os obstáculos físicos ao trabalho nas unhas dos pés.


Devido à sua natureza introspectiva, individual e íntima, raramente se realizam exposições ou mostras onicofágicas, nem se sabe de nenhum ateliê, de nenhuma galeria, oficina ou escola. Lojas de materiais também não existem, devido às restrições com relação ao material que pode ser utilizado. Tratados a respeito dessa arte também se encontram ainda por escrever. Por outro lado, justamente pelos mesmos motivos, não há praticamente nenhum lugar em que não se possa encontrar um artista trabalhando. Em casa, nas ruas, nos escritórios, shopping-centers, cinemas, praças, universidades, igrejas etc., com certeza a qualquer momento você pode se deparar com um artista em pleno trabalho. Então, desde que você não o interrompa, pode ficar por perto e observá-lo, enquanto mais uma pequena obra de arte vai sendo trazida ao mundo.

posted by panglossa at 11.11.06 2 comments

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domingo, outubro 29, 2006

O mestre

"-Mas, mestre... não pode ser verdade...

-Pode sim, meu jovem. Pode, e assim é. Ouça o que eu te digo: não vale a pena sofrer.

-Mas, como eu posso...

-Pode, se quiser. Se não tiver medo de encarar a verdade como ela é.

-A verdade, mestre, me mostre a verdade!

-Te mostrar, seu ignóbil! Te mostrar o que está na tua frente! É só olhar! Se não consegue ver, não sou eu que vou fazer isso por você...

-Na minha frente... não compreendo...

-Eu sei que não compreende. Porque é um ignóbil! Porque fica aí se lamentando por causa dessa sua rainha, por causa de amor, desprezo, sei lá o que mais, um monte de bobagem que só existe nessa sua imaginação inútil.

-Mestre, não é bobagem... eu a amo! Com toda a minha alma!

-Ama! Eu estava mesmo precisando rir um pouco... Você a ama! Pare um pouco e pense, sua besta: isso faz alguma diferença pra ela?

-Creio que não, mestre.

-Para o resto do mundo... para mim, para aqueles vagabundos passando ali ao longe... para todo e qualquer habitante dessa cidade, desse país, do mundo inteiro, de todos os mundos do universo... isso faz alguma diferença? Claro que não!

-Só para mim, ...

-Ah é? Me diga, então... para os milhões de micro-organismos que vivem no teu corpo... bactérias e tal... isso faz alguma diferença? Elas vão continuar vivendo e morrendo dentro de você, quer você a ame, quer a odeie, ela existindo ou deixando de existir... E nao é só isso: as tuas próprias células, que formam o teu próprio corpo... vc acha que lhes faz alguma diferença, por menor que seja?

-Não, mestre.

-Não mesmo! E o que é essa bobagem que você chama de 'amor'? É um sentimento que vem do mais profundo da tua alma? É uma sensação, é um estado de espírito... o que é?

-Já não sei mais, mestre...

-Pois, eu te digo... Não é nada disso! Não passa de reações químicas... células enviando impulsos elétricos umas às outras. Se o impulso fosse um pouco diferente, se for desviado para outra célula qualquer... vc não sente mais amor, vai ser outra coisa igualmente sem importância. O fato de você dar valor a essa bobagem não significa que ela deixe de ser uma bobagem!

-Não...

-Não? Você diz que vai morrer sem a tua rainha... Antes de você a conhecer, quantas vezes você morreu? Nenhuma! Tudo funcionava perfeitamente... cada átomo no seu lugar, cada célula fazendo o seu trabalho... vai me dizer que agora não é mais assim? Ou que, se você não tiver a sua rainha com você, isso tudo vai funcionar de alguma outra maneira... Você realmente acha que isso vai acontecer?

-Não, mestre... não...

-Então! Deixa de idiotice! Isso tudo é um monte de bobagem... rainha... sabe por que ela nem percebe você? Porque você fica se ocupando dessa bobagem toda! Achando que sentimento, que lealdade, que isso tudo é importante! Isso não é nada! Absolutamente nada! Por que ela perderia seu tempo com alguém que se ocupa de bobagens? Me escuta... isso não é nada!

-Sim, mestre... agora eu vejo... não é nada..."


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Ficou então ali, imóvel, pensando no que poderia fazer da sua vida. Vida? Que vida? Afinal, não existia vida... não existia mais vida, não havia mais anseios, nem desejos. Nem temores. Nem rancor, nem auto-piedade. Não havia mais traição, nem vingança. Não havia mais rainha, nem rival, nem o sol e nem a noite. Só ele não tinha percebido isso antes...

Ficou ali, imóvel. Olhando fixamente um ponto inexistente no infinito. Horas. Dias. Até morrer de inanição e se decompor, até sobrarem só os ossos, sem que ninguém desse pela sua falta. Nem a sua rainha. Nem mesmo o mestre.

Aliás, a essa hora, o grande mestre já tinha recebido sua recompensa pelo trabalho bem feito.

E voltado para o circo.

posted by panglossa at 29.10.06 0 comments

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